terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A vergonhosa omissão do jornal "O Estado de S. Paulo"21 de dezembro de 2010

Por Lúcio Mello
Jornalista, servidor público e mestrando em Geografia pela UnB
Da Rede de Comunicadores pela Reforma Agrária

Que o Estadão tem vínculos históricos com o agronegócio, isso não é lá uma novidade. A relação do tradicional jornal, fundado nos tempos áureos dos cafezais de São Paulo, com os grandes proprietários de terra voltados à agroexportação não é também nada de novo. Alias, nas suas primeiras ediçoes, se costuma usar os classificados para compra e venda de escravos...

O que tem assustado os leitores mais esclarecidos que dedicam seu tempo e dinheiro para ler este jornal – mais que centenário – tem sido um histórico recente de leviandades jornalisticas, nesses últimos anos e uma luta quase que teatral contra fatos e a realidade.

As boas análises,com as quais seus editores foram reconhecidos durante anos, fazia deste impresso uma referência para os grandes debates da sociedade brasileira e sobre os rumos do nosso País.

No entanto, as análises cada dia mais superficiais estão refletindo em um total descompromisso com o contraditório e com as matérias-prima do jornalismo: as informações e os fatos.

Nesta terça-feira, 21 de dezembro de 2010, podemos ver esta contradição no editorial “Deixem a Agricultura Trabalhar”. Como bem convém aos textos deste espaço fundamental dos meios de comunicação, há uma mescla de dados com argumentos, o que, a priori, saudamos e só nos faz enaltecer o papel da imprensa em nossa sociedade, ampla democrática e com liberdade de expressão.

Só que assusta, enquanto jornalista e pesquisador, uma total falta de sustentação argumentativa no raciocínio, o que não contribui em nada para o debate e para o crescimento da sociedade brasileira e de suas instituições.

Aos fatos: em sua argumentação principal, o editorial louva a importância do agronegócio na sociedade brasileira, sobretudo, na pauta das exportações brasileiras e na promoção do superávit da balança comercial.

Até aí, nada de errado. É reconhecido o papel da monocultura agroexportadora na chamada modernização conservadora entre 1964 e o fim da década de 70. Particularmente no meio rural brasileiro, este processo fez-se sentir desde os anos 60. A ideia de uma produção capitalista no campo surge no contexto da Revolução Verde que, a partir dos anos 50, se tornou o paradigma dos países desenvolvidos e modelo de desenvolvimento a ser seguido pelos países periféricos.

O que o editorial ignora, ou omite, é que estes foram os preceitos para a intensa migração rural rumo às cidades cujos fenômenos foram profundamente estudados e não podem ser ignorados, dentre eles o inchaço e posterior favelização dos grandes centros urbanos, com significativo aumento da violência.

Não são poucos os pesquisadores que comparam este processo migratório a processos de fechamento dos campos (enclosures) na Inglaterra da Revolução Industrial, pois criou um verdadeiro exército industrial de mão-de-obra, disposto a trabalhar por um salário mínimo cada vez menor entre os anos 70 e 90, em condições miseráveis. Não creio que o Estadão ignore tal fato.

O editorial destaca ainda a projeção do atual Ministro da Agricultura, Wagner Rossi, em ampliar o superávit em R$75 bilhões. Ora, desde os anos 80 a agricultura tem, de fato, papel significativo nas pautas de exportações brasileiras e consequentemente no superávit comercial. Mas apenas superavit, não significa nem progresso, nem ganhos para a sociedade brasileira. Vejam. Nossa sociedade destina 200 milhões de hectares para a pecuaria, aonde se criam ao redor de 240 milhões de cabeças de gado, cujo objetivo principal é exportar carne bovina, in natura, ou seja sem praticamente nenhum agregado de valor, de mao-de-obra, de industrializaçao. E esse esforço retorna a sociedade brasileira o redor de 5 bilhões de dolares de exportações. Uma só fabrica, a EMBRAER de São jose dos campos, com seus 12 mil operarios exporta mais do que isso por ano!!

Ao louvar este setor e sua competitividade relativa ao agronegócio de outros países, o editorial ignora, ou omite, que este mesmo setor tem parcela de culpa considerável na dívida pública brasileira, seja através de sucessivas dívidas simplesmente não pagas ou através de repasses com ônus ou tesouros de projetos agropecuários faraônicos e verdadeiros elefantes brancos espalhados na paisagem rural do país afora.

Dívida Agrícola, Títulos da Dívida Agrária, precatórios, a análise de Hashizume estima em R$ 74 bilhões as dívidas em maio de 2008. A equalização de juros, ou seja a diferença entre o que os fazendeiros pagam aos bancos de dividas atrasadas e o juro de mercado, é assumido pelo tesouro nacional, pelos nosso dinheiro recolhido na forma de imposto e custa ao redor de 2 bilhões de reais por ano. Mais do que todo orçamento do MDA.

É como dizer, tautologicamente, como os biscoitos de tostines: que o superávit é necessário para pagar a dívida que o mesmo setor acumulou e ainda acumula. A conta, portanto, parece não fechar, e, mesmo assim, o jornal "O Estado de S. Paulo" pede para que o governo federal dê melhores condições. Além da anistia de dívidas, juros subsidiados e total apoio político, a pergunta é: o que mais querem os ruralistas e o agronegócio?

O editorial, ainda, chama o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o MST e PT de representantes da “bandeira do atraso”. A base do argumento qual seria? Não está claro, mas ele defende o agronegócio por sua “eficiência” e aqui residiria o avanço em oposição a estes “atrasados”.

Sobre as diferenças entre "atraso" e "moderno" a senadora katia Abreu e presidenta dos ruralistas, reconheceu em entrevista no outro jornalão paulista,de que cabe ao agronegocio produzir barato, porem com muito veneno, para a população pobre brasileira. Já os pequenos agricultores, que se dedicam a agroecologia podem seguir produzindo alimentos organicos, para que a elite brasileira, nós, dizia ela, continuamos nos alimentar com produtos saudaveis. Aonde está o moderno nessa declaração?

O avanço do agronegócio, porém, deve se basear em eficiência política fisiológica, porque, economicamente, como Guilherme Delgado demonstrou, não é lá essas coisas.

Mas voltando ao atraso, o editorial critica a revisão dos índices de produtividade. Ora, é no mínimo contraditório, para não dizer paradoxal, um setor que se diz eficiente ter medo da revisão de um índice criado pela própria legislação em vigor desde 1993. Os indices utilizados pelo INCRA para medir se uma fazenda é produtiva ou não, são apenas do Censo agropecuario de 1975! Ora, não é esse jornal o simbolo do reacionarismo que a tudo evoca o respeito a lei? Cadê a lei, que determina a atualização a cada dez anos?

Mas é ao combater a revisão dos índices de produtividades que o “Estadão” zomba da inteligência do seu principal ativo: seus leitores. Vejamos: o editorial defende que os brasileiros, a maioria vivendo em grandes cidades, depende de alimentos bons, baratos acessíveis e de qualidade. Sem dúvida.

No entanto, segundo o jornal paulista é o agronegócio o responsável por estes alimentos. Aqui o argumento ignora, ou omite que estudos do censo agropecuário de 2006 apontam que 80% dos alimentos consumidos por estes brasileiros das grandes cidades vêm da produção de agricultores familiares, cerca de 4,5 milhões de famílias.

O editoral não explicita que estes nunca se opuseram à revisão do índice de produtividade e o porquê pode ser inferido em um conta bem simples: em 30% do território estes produtores, com trabalho essencialmente familiar e com propriedades com até quatro campos de futebol, produzem um volume de riqueza estimado em 10% do PIB, quando a agropecuária para exportação ocupa 50% das terras, com uso de agrotóxicos, máquinas, responde por 30% do PIB.

Portanto o “fato inegável” do editorial é negável e não resiste a qualquer pesquisa de três cliques na internet. O agronegócio não é responsável por alimentos bons, baratos e de qualidade.

Por mais que comamos soja, açúcar, café e suco de laranja, é o produtor familiar que abastece em sua maioria as cidades de leite, feijão mandioca, gerando renda e impedindo o aumento do fluxo migratório para São Paulo, Rio de Janeiro e capitais, com menor endividamento e o controle por empresas transnacionais da produção.

Desculpem-me se a análise se torna enfadonha, mas agora vamos até o fim e falta pouco.

A “argumentação” ou peça publicitária, se preferirmos, chega então por inferência lógica , ao menos segundo o autor do editorial, a conclusão que o Brasil não precisa mais de reforma agrária. Portanto o país, com a pior distribuição de renda, com cerca de 10% da população morando em favelas, com 30% de pessoas sem acesso a saneamento básico nas cidades inchadas e sobrevivendo sabe-se lá como, não precisa desta “bandeira do atraso”.

Feita esta análise, ponto a ponto, uma última consideração sobre os aspectos jornalísticos do momento em que vive a imprensa brasileira. O editorial, a despeito de seu desejo de enaltecer este setor, incorre em profundos erros de perspectiva histórica, sociológica e econômica. Claro que não espero do jornal mais conservador brasileiro que ele negue suas origens, seria até primário.

No entanto, para mim, como jornalista, como pesquisador da geografia agrária e membro da rede de comunicadores da reforma agrária, não é possível ignorar os fatos ou tentar tampar o sol com a peneira. Acho que como eu, o sentimento de um segmento considerável da população brasileira é de que a nossa inteligência vem constantemente sendo subestimada pela grande imprensa.

É cada vez menor os espaços de análise na grande mídia e quando estas não são coniventes ao jornais, não ocupam lugar nenhum em suas páginas, como o caso emblemático da psicóloga e ex-colunista Maria Rita Kehl . Como um jornal que defende a liberdade de expressão não dá, em suas páginas, o direito ao contraditório? Que liberdade é essa que um fala e todos escutam?

É por isso que é importante convocar todos os blogueiros e meios de comunicação alternativos, bem como os estudiosos do meio rural brasileiro, a divulgarem suas análise e contrapontos em nome de uma visão mais criteriosa dos grandes meios de comunicação com a questão rural. Contem com a Rede de Comunicadores da Reforma Agrária para isso. Talvez estimular o contraponto ao cada dia mais precário ponto de vista dos grandes meios , com dados disponíveis e de fácil acesso na internet, seja o caminho importate de formulação e militância.

O caminho aberto pela internet não pode ser negado e os fatos que não se sustentam não podem mais ser repetidos como uma mentira até que se tornem verdades. Que uma outra visão sobre o campo no Brasil possa ser discutida abertamente na sociedade, com outras vozes, e novas ideias.

Aos leitores, está cada dia mais difícil empurrar-lhes análises distorcidas e engajadas de veículos cada vez mais distante da realidade e incapazes de promover uma análise menos rasa e mais sóbria do contexto social brasileiro.

Afinal, como ensina a letra de Zé Ramalho, apesar de viver tão perto da ignorância, o povo foge dela .E como ensinam os filmes do Mazaropi, ele é capaz de produzir sua própria sabedoria.

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